quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.A gente se acostuma para poupar a vida.Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

A gente se acostuma a acostumar com gente acostumada...

Marina Colasanti (texto adaptado)

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Mensagem a um médico aposentado


Ao Presbítero amado, Dr. José Marques Ferreira


“Só Lucas, o médico amado, está comigo.”

Vinte, vinte e cinco, trinta anos,
No exercício de abençoada missão,
Não importa, irmão, amado no Senhor,
Embora os anos lhe tenham passado,
Como um conto que se conta, bom ou ruim,
Na expressão do Salmista,
O Deus eterno, sempre alentará, suas forças,
Para que você possa continuar, além do tempo,
Ungindo, como precioso ungüento curativo,
As feridas de seus pacientes,
Sua solícita simpatia e humildade,
Não só como profissional eficiente,
Mas acima de tudo como Cristão.

A cana jamais se esmagará nem se ressecará,
Nem a torcida de sua candeia,

Deixará de brilhar, supridas pelo Santo Espírito,
Você, assim, presbítero Amado,
Terá continuamente renovadas suas forças,
Porque, os que confiam no Senhor,
Por maiores sejam as procelas,
Jamais serão abalados,
Nos fundamentos da sua fé, não fingida,
Pois, assim, Jesus tem prometido.

O nosso Deus terno e misericordioso,
Do seu ontem, do seu hoje, será o do seu amanhã,
Confia, pois, a Ele, as frustrações presentes,
As energias debilitadas, ao longo da jornada,
Ele, conforme, sua bendita promessa,
Revitalizará plenamente suas forças,
E o querido irmão, verá com clareza,
Brilhando a Estrela da Manhã,
Além de quaisquer nuvens rebeldes,
Que queiram, insistentes, sua vida toldar,
Como se não fosse possível, na vivência diária do irmão,
A experiência consoladora, das misericórdias do Senhor,
Se renovando cada dia, na sua vida, tão preciosa,
Mesmo quando o sol esteja oculto,
O Senhor prometeu e não falhará:
A minha Luz brilhará, no meio de suas trevas!

Milburges G. Ribeiro
Rio Verde, 19/05/1992

ao Governador Mário Covas


Senhor Governador, conhecemo-nos em Santos, na Prefeitura. Jonas Faulin nos apresentou. Na ocasião, 75 a 79, eu era Pastor da Igreja Presbiteriana de Santos, Campo Grande. Jonas era o Secretário do Conselho da Igreja. Nosso amigo comum, Jonas, infelizmente, não mais conosco.

Dr. Covas, tenho acompanhado a sua luta contra a insidiosa enfermidade que o acomete, e, como velho Pastor, senti imperiosa necessidade de lhe dirigir esta mensagem.

Há momentos, Dr. Covas, em que inesperadas e inaceitáveis adversidades nos atingem, com intensidade e conseqüências irreversíveis. Assim, de repente, nos sentimos fragilizados psicologicamente e espiritualmente, por que não encontramos uma resposta que nos satisfaça as indagações mais profundas do nosso ser. Aos nossos por quês?!

Forçados que somos a confrontos inapeláveis, quanto ao nosso desempenho ao longo da nossa historicidade. Diante da nossa frágil e incompleta avaliação de como nos situamos diante do grande momento.

Dr. Covas, meu amigo, meu irmão, o meu desejo carinhoso, solidário, é para que o Sr. se dê a chance para descobrir e experimentar a maravilhosa misericórdia de Deus, revelada a todos os que sofrem na pessoa de Seu Filho Jesus Cristo, que, existe uma Luz ao fim do túnel. Um dos belos Salmos da Bíblia, o 23, nos fala: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo.” As trevas que nos assaltam o íntimo serão vencidas pela Luz de Jesus. Ele nos diz: “Eu sou a luz do mundo, aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida”. E mais: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou, não vo-la dou conforme o mundo a dá, não se turbe o vosso coração, nem se atemorize”.

Não estou lhe propondo um novo credo religioso, o que de fato, não lhe beneficiaria em nada. Todavia, proponho-lhe a verdade expressa nas palavras de Jesus: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará... se, pois, o Filho vos libertar verdadeiramente sereis livres”. Livres, Dr. Covas, para em meio às lutas do presente, poder fazer um inventário melhor da nossa concretude humana. A Bíblia nos fala de um homem sofredor, mas que depositava total confiança no propósito do Deus Eterno, para sua vida. Jeremias, era o seu nome, disse ele: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança... Porque as misericórdias do Senhor, renovam-se cada manhã, razão de não sermos consumidos. Grande é a sua Fidelidade”.

Então, Dr. Covas, segure nas mãos do Deus Eterno, e o Sr. aguardará, com serenidade, tranqüilo, como o nosso Jonas Faulin, a vontade soberana do nosso Eterno Pai.

Jó, o homem humilde e paciente no sofrimento disse: “Receberia eu apenas os benefícios do Senhor e não os males? O Senhor o deu o Senhor o tirou, bendito seja o Senhor”. Impressionei-me quando o Sr. se expressou mais ou menos da mesma maneira.

Segura na mão de Deus e seja tranqüilo, pois a Luz de Jesus iluminará a sua caminhada, rumo à eternidade. A sombra se fará Luz. Amém?!

No amor de Jesus!

Milburges G. Ribeiro
Rio Verde, 16/01/2001

Procura-se um Amigo


Procura-se um amigo.
Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento, basta ter coração.
Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir o que as palavras não dizem.
Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaros, das estrelas, do sol, da lua, do canto dos ventos e das canções da brisa.
Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.
Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo.
Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão.

Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados.
Não é preciso que seja puro, nem que seja de todo impuro, mas não deve ser vulgar.
Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa.
Tem de ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo.
Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários.
Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova quando chamado de amigo.
Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações da infância.

Preciso de um amigo para não enlouquecer, para contar o que vi de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade.
Deve gostar de ruas desertas, de poças d´água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Preciso de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já tenho um amigo.

Preciso de um amigo para parar de chorar.
Para não viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas.
Que bata nos ombros sorrindo e chorando, mas que me chame de amigo, para que eu tenha a consciência de que ainda vivo.

Vinícius de Moraes

A Última Corrida

Como um meteoro brilhante e azul,
em louca, quase absurda disparada,
voa pela pista tortuosa e insegura
o carro azul e branco... ao volante, audaz, intrépido,
o jovem e querido piloto brasileiro.

Cada prova, por mais difícil fosse,
era-lhe desafio, inquestionável, a ser aceito,
possivelmente, sempre um novo sonho,
de novas e mais expressivas vitórias a conquistar,
mais um troféu no alto do podium receber.

Quanto mais difícil e perigoso, paradoxalmente,
o traçado da pista a percorrer,
mais desafiado se sentia o piloto
a superar todos os obstáculos propostos,
muito além dos seus próprios e ponderáveis limites.

O ronco surdo do motor, em toda a sua potência,
imprime ao coração jovem e aguerrido
um ritmo e um esforço nunca visto, pura adrenalina,
é a emoção consciente dos bravos, diante do perigo,
não apenas pelo troféu, ao fim de cada corrida...
pois os sonhos, por serem sonhos, não têm limites,
projeta-se, cada vez mais, ao inconquistável infinito.

Imola, 1º de maio de 1994, - manhã,
Ayrton Senna, atleta do volante, nosso patrício,
cada vitória sua, uma vitória nossa...
agora, nossa esperança é a de que naquele encontro,
com Jesus, no percurso rápido de sua vida,
tenha provido sua existência, prematura,
daqueles valores imperecíveis e eternos,
suficientes para terem dado a você, nesta corrida final,
sua maior e mais brilhante vitória...
pois, finalmente, você alcançou o infinito,
o Infinito com Deus,
desse Deus de cujo amor, você, meu irmãozinho,
jamais quis se separar!

À Família Senna, com muito carinho.

Rev. Milburges G. Ribeiro
Rio Verde, 1º-V-1994

Confissão de vazio...

Vazio é ausência de algo
que estava ali, e não está mais,
é um espaço desocupado,
que não há como preencher
a não ser, que, o que se foi
pudesse voltar a ser presente.

Vazio é sentimento profundo,
de nostalgia, de se sentir só;
é procurar e não encontrar
o que, antes, ali estava,
ocupando o espaço que nos bastava.

Vazio é não ter o que olhar,
por não se ver o que buscar,
é aquela sensação estranha,
de que nalgum desconhecido,
porém, não distante recanto,
seja possível recuperar o que se foi.

Vazio é ter um medo intangível,
de uma perda irreparável,
porque não se teve consciência,
no tempo e no lugar certo,
de se buscar e encontrar,
o que, sempre, nos esteve ao lado.

Vazio é a ingênua tentativa,
nos deveres a mente ocupar,
pra poder se desculpar
da falta que o descuido criou,
é o receio de não ter mais tempo,
para o tempo perdido recuperar.

Vazio, difícil, mas não impossível,
de ser, novamente, conquistado,
pois se o amor jamais acaba,
será ele, então, a fonte inesgotável,
que fará renascer bem vivas
as flores do nosso jardim, pelo tempo, fenecidas.


Milburges G. Ribeiro
Piracanjuba 14/03/1989

Horizontes


Ao meu filho David
Paracatu, 1º de agosto de 1980


Que limites tens imposto aos horizontes de tua vida?
Estreitos ou amplos?
Grandiosos ou medíocres?
Por que estabeleceres, tu mesmo, os limites de tua vida?
Não te esqueças de que eles terão
a plenitude imposta, por tua própria visão do infinito.
Não faças como Terá, que se contentou em armar
as tendas nos limites de Harã.
Ao contrário, amplia, como Abraão, a tua visão,
para veres o infinito,
e, assim, possa alargar as abas da tua tenda,
para que nela toda uma humanidade seja, finalmente,
abençoada.

É preciso ter a visão do infinito,
a visão da fé, que te permita ver o invisível,
além das circunstancialidades do momento.
É preciso ter os olhos com a abertura do infinito,
para te sentires cercado das milícias celestes,
protegendo-te em tuas íntimas batalhas.
Coloca os teus horizontes, bem lá no infinito de Deus
pois o que se vê ali, ao toque de tua frágil mão
não é esperança que possa satisfazer os
anseios de tua alma juvenil.

Arranca-te de uma vez dos teus estreitos limite,
corra como o Apostolo Paulo,
e os heróis da fé, a boa, a excelente
carreira estabelecida pelo Senhor.
Se teus olhos míopes não podem enxergar
os infinitos horizontes, deixa que o Senhor
unge teus olhos com o colírio do Espírito,
e tuas serão, aqui mesmo, as bênçãos
infinitas que Cristo, nas regiões celestiais
preparou para ti.

Não te contentes com os horizontes,
inferiores aos do infinito, siga as pisadas
do teu Mestre e Senhor, cujos horizontes
estavam além da Cruz.

Milburges G. Ribeiro
03/08/1928 - 29/12/2005